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domingo, 23 de janeiro de 2011

Da trilogia Contos de propósito: Porre seco


 Porre seco

Tenho 49 anos, me faltam dentes e cabelos, mas moro no apartamento que é meu, paguei caro por ele. Para quitar a última parcela tive que vender minha biblioteca. Vivo só, sempre mal de grana, pago minhas contas. Já bebi muito nesta vida, agora bebo apenas vinho tinto do bom, que por ser mais caro regula o trago.
E, aos 49 anos, tenho uma fissura. Quero saber quem era a pessoa,
o leitor ou a leitora do livro que mais gostei nos últimos tempos, La Tregua, de Mario Benedetti.
Como já disse antes, minha biblioteca, que tive que vender era basicamente de livros de grandes contistas. Tinha quase todos os mestres do gênero. Cortázar, Machado de Assis, Horácio Quiroga,
 Tchekov, Edgar Allan Poe, Rubem Fonseca, Onetti, Lima Barreto, Borges e Kafka, entre outros pelés do ofício de contista.
Tinha esses todos por ordem. Era fácil localizar qualquer volume, às cegas eu encontrava. Eu era um Jorge Luis Borges em meio a um montão de livros. Sei que vivo muito bem sozinho e bebo um pouco de vinho... Acho que já falei isso. Tive que me desfazer dos livros para ter sossego e para morar e onde cair morto.
Só quero saber que leu La tregua antes de mim, esta edição aqui.  Nem eu mesmo sei lá muito bem o que significa esta gana de conhecer alguém por uma coisa tão em comum.
Uma coisa que me preocupa de fato é o estoque pó de café, que está acabando e também o vinho tinto.
Vai ver que é por isso que às vezes sinto como se eu fosse aquele personagem de A Construção, do conto de Franz Kafka. De alguns contos a gente jamais vai se livrar. 
Eu lembro que no dia em que comprei o livro fazia frio e que chovia. Era a véspera de completar meus 49 anos. Num final de tarde, resolvi me abrigar entrando em um dos muitos sebos que ficam no velho centro da cidade. Enquanto me sacudia da chuva feito um cachorro procurava algo para ler. Era a força do hábito, percorri com olhos e dedos a sessão de autores estrangeiros, escolhi um de Mario Benedetti. Peguei, gostei da capa, da taça de café vazia, o tom sépia da foto. A primeira frase: Sólo me faltan seis meses y veintiocho dias para estar en condiciones de jubilarme. Para mim faltam quinze anos e meio.
Me identifiquei de cara, tinha quase a mesma idade do personagem que narra a história do livro, 49 anos. Trabalho numa biblioteca de um curso de Letras, faculdade particular. A grana é pouca, mas o trabalho de funcionário também não é muito puxado.
Em casa, uma xícara de café sempre à mão - tomo muito café desde que deixei de beber, recomecei a ler. Descobri que a pessoa que o lera anteriormente assinalou palavras e expressões do autor, traduzindo algumas destas em letra miúda e delicada. Às vezes parecendo que escreveu em movimento, quem sabe enquanto lia dentro de algum ônibus. Era o caso de empalagosa, ao lado estava escrito, em caneta esferográfica, tinha outras escritas a lápis; a palavra enjoativa.
Na página de rosto a mesma letra, à caneta tinteiro, assina penas com as iniciais L.A. e uma data: Montevideo, julio de 2005.
Aos poucos fui me interessando cada vez mais pela tal pessoa, a leitora, leitor, sei lá.  Cheguei a ponto de confundir meu interesse com a aproximação entre Martín e Laura, da história que li.
De repente me vem uma vontade de descobrir tudo sobre L.A. quem é esta pessoa?  Por sinal, L.A. são as mesmas iniciais de Laura Avellaneda, a mocinha, trágica heroína da novela de Benedetti.
Às vezes, quando me vejo às voltas com minhas invenções e implicâncias, me sinto muito mais velho do que um cara que recém completou 49 anos. Que Benedetti que nada, estou mais para Juan Carlos Onetti, pelos contos de solidão regados a vinho tinto.
Tenho essa fissura por descobrir quem leu La Tregua antes de mim. Ao ler Benedetti me lembro de Onetti. É o meu fascínio pela cidade de Montevidéu.
Já estive duas vezes naquela cidade e tenho o desejo e voltar lá. Uma vez no verão, mas essa não vale. Foi em férias com a família, eu era um pré-adolescente, só lembro que gostei muita da cidade. Depois foi bem mais tarde, era inverno, foi com uma namorada, passamos um feriado. Fazia muito frio e me lembro muito pouco porque passei a maior parte do tempo bêbado. Hoje já não bebo tanto. Por isso mesmo é que me sinto intrigado e quero saber mais sobre quem seria a pessoa. Até parece que não tenho porra nenhuma para me ocupar.
Desejo volver a Montevidéu, mas desta vez será sóbrio. Quem sabe encontraria L.A. por lá? Será que alguém do Uruguai, ou seria um caixeiro-viajante argentino que se hospedou por lá? Talvez um turista.
Mas por que me apressar? O tal Martin conheceu sua Avellaneda na página 17, capítulo Miércoles 27 de febrero e só se revelou enamorado lá pela página 64, Viernes 17 de mayo.
Preciso aprender a controlar ansiedades. Quero sair em busca de  L.A. que leu o livro Benedetti antes de mim. 
Estou à beira dos 50 anos, devo me preparar bem para viver a segunda metade de século de minha vida. Quem sabe em Montevidéu, quem sabe ao lado de L.A. Quem será? O que faz para viver? O que faz da sua vida?
Daí então a minha Montevidéu ficará na medida para um vinho tinto, sem a melancolia solitária que me persegue.  Algo como fosse algum personagem de um conto de Onetti.