Desventuras de um caçador da parabólica perdida na fronteira do Brasil com países do Prata.
Uruguaiana, Hotel Aliança – Quarto 105, sábado, 6 de novembro. Esta é a terra do poeta e soldado Alcêu Wamosy, nascido aqui em 1895 e morto durante a Revolução de 1923, em Santana do Livramento. Primeira informação recebida. Fiz o reconhecimento do Setor de trabalho, faz calor. A tarde de trabalho rendeu pouco. Esta é a primeira vez em que faço este tipo de pesquisa e a cidade também é inédita para mim.
Na praça da Rodoviária tem um monumento em homenagem a Don Quijote de La Mancha, é uma escultura que lembra os guerreiros de Xico Stockinger (1919-2009).
Bagé, domingo 7 de novembro. É cidade histórica, com altos e baixos na sua topografia, ou seja; tem lombas. Essas, sob o sol, são politicamente incorretas. Calor e trabalho que rendeu mais do que o que foi realizado em Uruguaiana.
Hoje terminei minha leitura de Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, trata-se de um impressionante e preciso flagrante do que a grande imprensa, do que ela foi há éculo e do pouco que mudou, pelos menos dentro das redações. Assim ainda são as relações entre os “coleguinhas”.
Uruguaiana, lunes 8 de novembro, hoje o trabalho rendeu, na manhã que foi muito quente e na tarde que foi tórrida. Sou um caçador da parabólica perdida, ou pesquisador do IBOPE – ENTREVISTADOR MÍDIA, conforme e-mail recebido. No café da manhã, no hotel, vi um gauchão dos típicos, o taura, totalmente pilchado, enfiava cara no café não levantava nem o olho. Com um melena que mete respeito e o chapéu de barbicacho descansa na cadeira ao lado. Só faltou o pingo amarrado na porta.
À noite, durante o jantar, num bar com mesas e cadeiras na calçada, ouvi de uma mesa ao lado três sujeitos falando animadamente em árabe, numa outra, dois caras com jeito e fala de ratos contavam vantagens sobre o triste fim de mais “um vagabundo”.
Na estrada, martes, 9 de novembro. Amanheço em plena ponte rodoviária Uruguaiana - Bagé, são 12 horas com a bunda colada num ônibus. Com direito a paradas em Quaraí, Santana do Livramento e Dom Pedrito. Um dúzia de horas, ida e volta entre as duas cidades. Abordo muitos sotaques, cores e roupas distintas.
Já em Bagé, abaixo de chuva e muito vento, a temperatura ontem era de quase 40 graus, clima seco. Em Bagé, à tarde, fazia 13 graus, a gente é sobrevivente. Meu trabalho segue seu rumo também em Bagé.
Expresso São João
Antes que um cielo al revés
o pampa é um deserto pelo avesso
o sol poente incide sobre tudo, todos
inclusive àquele casal de emas
passeando distraído
e o cusco à espera do amo
na beira da estrada
em meio ao quase nada
são milagres poéticos para quem mira
desde a janela de um ônibus.
Uruguaiana, míércules, 10 de novembro. Um dia lindo com a temperatura agradável, a primavera repousa na fronteira. E também tenho um direito à folga. Parece um sonho realizado; trabalho, viagens por este mundo velho sem fronteiras, a mulher amada e o cachorro querido na base, Porto Alegre, na espera e na torcida.
E agora, direto de uma ficha do Arquivo Histórico e Público, Centro Cultural Dr. Pedro Marini e do Acervo de Raul Pont (pai):
ALCÊU WAMOSY (1895-1923)
Poeta e jornalista, foi diretor de “A República”, órgão do Partido Republicano da cidade de Santana do Livramento. Morto no dia 13 de setembro de 1923, em conseqüência de ferimento recebido no entrevero, em Livramento- RS. Idealizado por um grupo de poetas, foi instalada em abril de 1945, no Auditório da Associação Brasileira de Imprensa, a Fundação Alceu Wamosy. Obras: Flâmulas (1913), Na Terra Virgem (1914) , Coroa de Sonho (póstuma – 1923) . Sendo as três primeiras elaboradas em 1940, Livramento – RGS. Nova, edição 1945.
Abaixo um exemplo de um soneto, perfeito na forma e conteúdo, “mas não necessariamente revolucionário”, diria Maiakóvski. O poema Duas Almas, digno de releituras com a que fez certa vez um tal de Lupicínio Rodrigues. Nada mal para um poeta e soldado, Um sujeito que “quando estoura a revolução de 1923, seus sonhos de êxitos futuros serão truncados de maneira brutal. O combate de Poncho Verde, dia 3 de setembro, faz tombar, num lance de heroísmo, varado por uma bala inimiga, aquele cavaleiro do sonho misto de lutador, de apóstolo e de artista. Recolhido ao Hospital da Cruz Vermelha Santanense, consegue recuperar-se e decide antecipar a data do casamento, previsto para dezembro.
Ao invés do vestido de noiva, Maria Bellaguarda, a musa de Coroa de Sonho, diante da emoção de todos os presentes, ostentava, um simples uniforme de enfermeira.
No dia 13, ás primeiras horas da manhã um colapso cardíaco faz silenciar para todo o sempre aquela alma de poeta e herói”. (Rodrigues Till, editor e biógrafo de Alcêu Wamosy, in Cultura – Segundo Caderno, jornal Zero Hora de 18 de fevereiro de 1995)
Duas Almas
Ó tu que vens de longe, ó tu que vens cansada,
entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho.
Vives sozinha sempre e nunca foste amada...
.
A neve anda a branquear lividamente a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.
.
E amanhã quando a luz do sol dourar radiosa
essa estrada sem fim, deserta, horrenda e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!
.
Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...
|
ALCÊU WAMOSY
(1895 — 1923)
Nasceu em Uruguaiana (RS), em 14/02/1895; e faleceu em Livramento (RS), em 13/09/1923. Publicou seu primeiro livro de poesia, Flâmulas, em 1913. Na época já trabalhava como colaborador no jornal A Cidade, fundado por seu pai, em Alegrete (RS). A partir de 1917, tornou-se proprietário do jornal O Republicano, apoiando o Partido Republicano. Continuou colaborando para diversos periódicos, como os jornais A Notícia, A Federação, O Diário e a revista A Máscara.
Alferes republicano, lutou na Revolução Federalista, combatendo em Santa Maria Chica, Pontes do Ibirapuitá e Ponche Verde, onde foi ferido — ferimento este que provocaria a sua morte. Publicou as obras poéticas Na Terra Virgem (1914) e Coroa de Sonho (1923).
Postumamente foram publicados Poesias Completas (1925), pela editora Globo, e Poesia Completa (1994), em Porto Alegre, na “Coleção Memória”, da EDIPURCS. Poeta simbolista, Alceu Wamosy escreveu poemas cheios de desencanto, em uma produção que se destacou no sul do país e que é uma das obras mais significativas do Simbolismo brasileiro, sendo o seu soneto “Duas Almas” um dos mais belos produzido em língua portuguesa.
Enedy Rodrigues Till é o pesquisador que melhor estuda a obra de Alceu Wamosy.
Alferes republicano, lutou na Revolução Federalista, combatendo em Santa Maria Chica, Pontes do Ibirapuitá e Ponche Verde, onde foi ferido — ferimento este que provocaria a sua morte. Publicou as obras poéticas Na Terra Virgem (1914) e Coroa de Sonho (1923).
Postumamente foram publicados Poesias Completas (1925), pela editora Globo, e Poesia Completa (1994), em Porto Alegre, na “Coleção Memória”, da EDIPURCS. Poeta simbolista, Alceu Wamosy escreveu poemas cheios de desencanto, em uma produção que se destacou no sul do país e que é uma das obras mais significativas do Simbolismo brasileiro, sendo o seu soneto “Duas Almas” um dos mais belos produzido em língua portuguesa.
Enedy Rodrigues Till é o pesquisador que melhor estuda a obra de Alceu Wamosy.
Paso de Los Libres, jueves, 11 de novembro. Na praça em frente à Intendencia Municipal há muitos monumentos. Um deles é para Evita Perón, jefa espiritual de la nacion argentina. Outro é em memória dos mortos na Guerra das Malvinas (1982). Todos da classe de 1961, 1962. Que covardia, uns meninos que morreram quase que inutilmente, não fosse a queda imediata da sanguinária e militar ditadura argentina. Encontro quase todo cerrado, és la hora de la siesta, che. Hay una iglesia de San José em la ciudad, entrei e orei. Atravessei a ponte internacional e foi lá que vi, nesta estada, pela primeira vez um trem passando, era um cargueiro, é claro.
Depois bebi una Quilmes, comprei un vino malbec e o não, de sábado (6/11), suplemento cultural del Clarin. Estivo em la República Argentina, por supuesto!
Uruguaiana,viernes,12 de novembro. Se praga de urubu não mata cavalo gordo,aqui nesta região, estas aves planadoras que são o símbolo do Flamengo passariam muito mal, os puxadores de carroça são gordinhos e parece que bem tratados pelos seus condutores.
O trabalho está quase encerrado nesta cidade, que me acolheu bem. Hoje à tarde,vi passar um trem cargueiro, nos trilhos que cortam a rua Vasco Alves. Mais uma vez passe um tempo num dos pontos extremos do Brasil.
Uruguaiana, sábado, 13 de novembro. O recolhimento dos cadernos foi mais difícil do que previa. Houve reclamações, recusas e também que saísse de cena mais cedo, afina tinha um feriadão e calorão anunciados. Hasta siempre, río Uruguay!
Na estrada, de novo abordo do Expresso São João. Não que a de Porto Alegre seja um palácio de crista, mas quase nada é tão acanhada e feia como a Estação Rodoviária de Santana do Livramento. E olha, ou escuta, os sotaques, do tipo:-”daqui una hora estoy aí, preparáme un mate!...-“Chegando no centro, o senhor apeia na parada do Banco do Brasil”.
E na terra onde nasceu Dyonélio Machado – autor do Louco do Cati, parece que manda no pedaço é uma dupla pra lá de guaipecas, na Estação Rodoviária de Quaraí.
Em compensação a rodoviária de Don Pedrito tem uma aparência melancólica, ao entardecer. Chego em Bagé, já passa das onze da noite, faz um pouco de frio. Depois de uma longa travessia, fico num hotel meia boca, que está a uma quadra da tal rodoviária que por sinal também é feia e desconfortável. No domingo já faz calor, o trabalho está truncado. Isso era algo esperado no dia em meio a um feriadão, mesmo assim é um saco! E o clima da campanha é sempre uma surpresa.
O que via ficar de toda esta caçada em busca da parabólica perdida? Aquele senhor analfabeto (vivendo numa cidade importante do RS, em plena década de 10 do século XXI) que me recebeu todo desconfiado e enviou o caderno de pesquisa aos cuidados de sua advogada. A solidão de muitas pessoas, viúvas, viúvos, ora brigado com os filhos, ora tendo que cuidar dos netos. Um cavalo pastando solene no gramado da praça junto à rodoviária de Bagé. A descoberta de que em Uruguaiana talvez tenha e desfrute de um dos últimos cinemas de calçada, literalmente, do Brasil. Assistir no quarto do hotel cenas de O Gordo e o Magro, com Stan e Oliver falando em inglês, legendados em árabe. Histórias mais humanas como daquela senhora de 80 anos, que ganho do patrão, a quem conhece desde de guri, uma televisão nova “pra ver a copa, a teve antiga tinha chuvisco”.
0 comentários:
Postar um comentário